quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Amnésia

quis esquecer-me do mundo para que ele me esquecesse. e esquecia-me a cada dia do que imaginava o que poderia ser eu mundo outro. desconhecia-me conhecendo. e com o olhar primeiro sobre as coisas, ia me despindo do equívoco de "eu sei". sabia a cada dia que se podia saber mais e não sabendo não podia me bastar à vastidão do tudo-nada. queria transcender a margem de qualquer coisa que se fizesse existência; desinventar qualquer verdade que enquadrasse a imaginação que fosse; desfazer qualquer limite que me limitasse ir além. além quê? ainda não cheguei a quê.

sou-te e me é novo a cada dia. somo-nos segredos a serem celebrados diariamente.

(e se acaso me encontrasse e a cada dia lhe fosse lançado olhares estranhos como algo que te tivesse descoberto pela primeira vez, algo nunca testemunhado por aqueles olhos ávidos de ti? teria coragem de se expor a quem, a cada dia, te adentrava como uma luz que revela a escuridão?)

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Pequenas Epifanias

Dois ou três almoços, uns silêncios.
Fragmentos disso que chamamos de “minha vida’:


Há alguns dias, Deus — ou isso que chamamos assim, tão descuidadamente, de Deus — enviou-me certo presente ambíguo: uma possibilidade de amor. Ou disso que chamamos, também com descuido e alguma pressa, de amor. E você sabe a que me refiro.

Antes que pudesse me assustar e, depois do susto, hesitar entre ir ou não ir, querer ou não querer — eu já estava lá dentro. E estar dentro daquilo era bom. Não me entenda mal — não aconteceu qualquer intimidade dessas que você certamente imagina. Na verdade, não aconteceu quase nada. Dois ou três almoços, uns silêncios. Fragmentos disso que chamamos, com aquele mesmo descuido, de “minha vida”. Outros fragmentos, daquela “outra vida”. De repente cruzadas ali, por puro mistério, sobre as toalhas brancas e os copos de vinho ou água, entre casquinhas de pão e cinzeiros cheios que os garçons rapidamente esvaziavam para que nos sentíssemos limpos. E nos sentíamos.

Por trás do que acontecia, eu redescobria magias sem susto algum. E de repente me sentia protegido, você sabe como: a vida toda, esses pedacinhos desconexos, se armavam de outro jeito, fazendo sentido. Nada de mau me aconteceria, tinha certeza, enquanto estivesse dentro do campo magnético daquela outra pessoa. Os olhos da outra pessoa me olhavam e me reconheciam como outra pessoa, e suavemente faziam perguntas, investigavam terrenos: ah você não come açúcar, ah você é do signo de Libra. Traçando esboços, os dois. Tateando traços difusos, vagas promessas.

Nunca mais sair do centro daquele espaço para as duras ruas anônimas. Nunca mais sair daquele colo quente que é ter uma face para outra pessoa que também tem uma face para você, no meio da tralha desimportante e sem rosto de cada dia atravancando o coração. Mas no quarto, quinto dia, um trecho obsessivo do conto de Clarice Lispector — Tentação — na cabeça estonteada de encanto: “Mas ambos estavam comprometidos. Ele, com sua natureza aprisionada. Ela, com sua infância impossível”. Cito de memória, não sei se correto. Fala no encontro de uma menina ruiva, sentada num degrau às três da tarde, com um cão basset também ruivo, que passa acorrentado. Ele pára. Os dois se olham. Cintilam, prometidos. A dona o puxa. Ele se vai. E nada acontece.

De mais a mais, eu não queria. Seria preciso forjar climas, insinuar convites, servir vinhos, acender velas, fazer caras. Para talvez ouvir não. A não ser que soprasse tanto vento que velejasse por si. Não velejou. Além disso, sem perceber, eu estava dentro da aprendizagem solitária do não-pedir. Só compreendi dias depois, quando um amigo me falou — descuidado, também — em pequenas epifanias. Miudinhas, quase pífias revelações de Deus feito jóias encravadas no dia-a-dia.

Era isso — aquela outra vida, inesperadamente misturada à minha, olhando a minha opaca vida com os mesmos olhos atentos com que eu a olhava: uma pequena epifania. Em seguida vieram o tempo, a distância, a poeira soprando. Mas eu trouxe de lá a memória de qualquer coisa macia que tem me alimentado nestes dias seguintes de ausência e fome. Sobretudo à noite, aos domingos. Recuperei um jeito de fumar olhando para trás das janelas, vendo o que ninguém veria.

Atrás das janelas, retomo esse momento de mel e sangue que Deus colocou tão rápido, e com tanta delicadeza, frente aos meus olhos há tanto tempo incapazes de ver: uma possibilidade de amor. Curvo a cabeça, agradecido. E se estendo a mão, no meio da poeira de dentro de mim, posso tocar também em outra coisa. Essa pequena epifania. Com corpo e face. Que reponho devagar, traço a traço, quando estou só e tenho medo. Sorrio, então. E quase paro de sentir fome.

(Caio Fernando Abreu - O Estado de S. Paulo, 22/4/1986 )

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Sobre Flores e Trens Cargueiros

um trem cargueiro em mim se torcendo dentro. circunvoluções em volta do mesmo espaço mínimo e íntimo. peito de um corpo.

uma flor fora: cuidado que não me dou (as flores sobreviverão antes que eu despetale?). amanhã, talvez, a flor morra.

antes, tenta vencer, indo de encontro ao céu ao sol e só. com sua pouca e parca força. porcamente acinzentada. amarela. pálida. (recolhida de algum jardim drummondiano).

o trem dentro quer a flor fora: convulsão estática.

o corpo pára numa tensão de rocha labiríntica prestes à erupção. a flor à espreita fora provoca o trem dentro. dentro, o trem - no espaço intransponível - quer o cio da flor.

a flor em sua vaidade opaca quer o único ser que a vê. um ser que ao mínimo contato a estraçalhará. ela quer a violência dele.

a caminho de sua definhação ela se excita, como um sexo diante outro, desejante. sua pulsão máxima. quase brilho. ouropel.

o trem se debate no peito mínimo que já há muito não lhe cabe. a flor se desepera em êxtase. o corpo não vê flor nem trem. não tem memória.

a flor despetala-se num vaso poeirento num quarto qualquer. o trem turbulento, faz formigações no corpo.

e em mim, um mal estar no corpo - pele descascando - pensando no que poderei fazer amanhã.

(que talvez não venha)

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Partida

a velha queria ir ao aeroporto ver aviões partir. sonhou com um enorme, grande, na noite anterior àquela que descobriu ter um sonho. não sabia como eram os aeroportos. e a pouco descobriu como era ter um sonho (se não lhe fosse impossível, se pudesse sonhar um pouco mais, desejaria um aeroporto só para ela).

tinha como sua única posse pedaços de trapo pendurados sobre um corpo magro e encardido, que lhe escondia qualquer possibilidade de sensualidade, e um saco plástico com um cartão postal dentro, que ela achou na rua. nele, palavras que seu pouco vocabulário nunca conheceria: par avion. mas a imagem era linda, apesar dela não saber do que se trata - e, também, muitas pessoas dizem saber, mas por constrangimento. em silêncio, ela apenas assumia sua ignorância.

sempre que ouvia um avião, dizia que Deus lhe falava. ela que não sabia sequer dizer: Deus. um sorriso penso na sua boca banguela parecia entender. seu olhos só sabiam céu. Seu corpo, pronto para levitar, sempre.

ela não morava. sua casa era seu farrapo. seu corpo esquelético. ela talvez fosse o único ser na terra que podia dizer “sou-me”. em sua miséria, ela tinha a maior das posses. e ainda sim, ter o luxo de possuir um sonho. ver aviões partir.
seu sonho tornou-se obsessão. começou a segui-los, mesmo estes sendo-lhes impossíveis. era vê-los e ir até eles. de avião em avião, chegou ao tão sonhado aeroporto (o sonho acabara-lhe de ser o sonho num sonho).

seus olhos de tão abertos, pareciam tocar os aviões, mesmo eles a metros longos de distância. começou então, como numa espécie de ritual, a dançar, mexendo seus ossos quase descarnados, descoordenadamente, sem muita ordem. como sempre foi sua vida.

sem saber como, talvez pela movimentação ritualística involuntária, chegou na pista dos aviões. ela se extasiava com a dimensão de mundo que nunca teve para si. um espaço que enfim cabia teu parco corpo. um espaço do tamanho do ser que era ela.

a voz de deus lhe soou mais alta que o normal. ele agora lhe falava dentro. ela fecha os olhos. tremendo seus órgãos de pássaro natimorto, ela abre os olhos. seu sonho vinha para abraçar-lhe. tudo o que ela podia fazer era retribuir-lhe. foi de encontro a ele. fechou os olhos.

pela primeira vez em sua vida pode ver, ter e ser seu sonho: um avião de partida.

(um cartão é encontrado solto na pista. lia-se: par avion)